Segunda-feira, 21 de Maio de 2007
A voz afónica e os olhos vermelhos, aliás, encarnados, deixam perceber as emoções que os noventa minutos que antecederam as várias horas que se lhes seguiram, rumo às 4h da manhã, em que escrevo este texto, indiferente ao facto de ter de ir trabalhar daqui a pouco, provocaram. Em condições normais não seria fácil colocar em palavras aquilo de que vos falo, mas estas não são, definitivamente, condições normais. Em primeiro lugar, e acima de tudo o resto, porque escrevo para benfiquistas. Pessoas, portanto, que sofrem da mesma doença incurável que eu. Provavelmente estão a ter a mesma dificuldade em adormecer que eu, e não vos saem da cabeça (nem vocês queriam!) os acontecimentos da noite passada.
Se possuem, como eu, um cativo no Estádio da Luz, ou se por alguma razão que a própria razão teimasse em desconhecer decidiram ir despedir-se do Benfica 2006/07 in loco, trocando, portanto, o desconforto dos vossos sofás pelo conforto de uma aconchegante cadeira no Estádio, provavelmente ter-se-ão despedido dos familiares mais próximos com um “Até já, volto a horas de jantar”. A congestão das linhas telefónicas que atingiu todas as operadoras móveis sem excepção deixou-vos sem a possibilidade de avisar que afinal não chegavam a horas de jantar… ou sequer da ceia. Confiaram, no entanto, no bom juízo dos que vos são mais próximos e não deixaram de pensar para com os vossos botões que não seria possível que imaginassem por um momento sequer que vocês fossem abandonar o estádio, ou as suas imediações, mal o jogo terminasse, sobretudo tendo em conta os acontecimentos que, de uma forma resumida, darei conta já de seguida.
Tudo começou de uma forma bem inocente e despreocupada. A tarde solarenga convidava a um passeio à beira-Tejo e, agora que penso nisso, não deixa de ser curioso que do outro lado da segunda circular a equipa que quando joga em casa tem uma bela vista sobre o Tejo tenha ajudado à concretização da conjugação de resultados que permitiria suceder o que sucedeu. Temos, no entanto, que manter uma postura fidedigna perante a realidade, e os adeptos sportinguistas pareceram sempre muito despreocupados com o que estava a suceder nos três campos, mais parecendo que, se as coisas terminassem como estavam à entrada para esta última jornada, não se ouviria qualquer lamento de infortúnio daquelas bandas. O ambiente só se tornou infernal quando os adeptos já abandonavam os seus lugares, contentes com a prestação da equipa no jogo e sobretudo no campeonato, e chegaram ecos ruidosos do que tinha acontecido a escassos quilómetros de distância e do outro lado da rua. Mas já lá vamos…
Até porque, precisamente nesse lado da rua, não se notava uma efervescência fora do normal no local onde porventura o caro leitor estava sentado, porque, independentemente dos resultados verificados nos campos alheios, o Benfica não fazia o essencial: ganhar o seu jogo, perante a Académica de Coimbra. Até tinha estado em vantagem no marcador, mas uma grande penalidade, indiscutível, havia dado, além do empate à Briosa, também a possibilidade de encarar o resto da partida com mais um elemento. “Mais um elemento” que, neste caso, deve ser entendido como força de expressão, pois o “reforço” de Inverno que provocara a falta, tão escusada como evidente, havia dado muito pouco à equipa nos meses em que lhe foi dada a oportunidade de vestir a gloriosa camisola, e este jogo não estava a ser excepção. A sua expulsão, mais do que enfraquecer a equipa, pareceu dar um certo ânimo aos restantes jogadores que ficaram em campo, e os espaços que a inserção de mais avançados em campo por parte do treinador dos visitantes ia provocando originaram algumas jogadas de perigo que, no entanto, iam sendo ingloriamente falhadas, até para não destoar da história recente dos jogos caseiros disputados pelo Benfica nesta temporada que estava prestes a dar o último suspiro.
Mais a Norte, ia-se fazendo a festa, e nas bancadas respirava-se optimismo, apesar da parca vantagem que o golo marcado logo ao terceiro minuto de jogo havia dado à equipa da casa. Não que a exibição estivesse a ser de grande monta, mas, convenhamos, não era minimamente expectável nesta altura que nos últimos cinco minutos, e nos únicos dois remates à baliza do habitual guarda-redes suplente, que havia entrado poucos minutos antes para se sagrar campeão, o Desportivo das Aves marcasse dois golos. A surpresa foi tanta e tão generalizada que a validação dos mesmos ficou a salvo de qualquer oligarice, o que pareceu surpreender ainda mais os já de si surpreendidos jogadores azuis e brancos.
Engraçadas eram, caricatas ficaram, as faces dos jogadores da casa, que haviam sido pintadas com as cores do emblema que representam, isto porque a junção da tinta com as lágrimas que iam brotando dos olhos dos jogadores outrora festivos provocava uma espécie de pintura que fazia lembrar os célebres estrunfes.
E tudo isto, porquê? Porque no Estádio da Luz, com requintes de sadismo que desafiam a própria realidade, porque é da realidade que vos falo e os meus braços marcados por inúmeros beliscões estão aqui para o comprovar, como eu dizia, no Estádio da Luz, quando estava decorrido o segundo dos três minutos de compensação dados pelo árbitro, surgira o golo salvador (ou demoníaco, dependendo da perspectiva) que, mais do que dar a vantagem no marcador, coroava o Benfica como campeão nacional da época 2006/07.
Surpreendente, ou não, acabou por ser a apresentação de um sketch nos ecrãs do Estádio, logo após o final do jogo, em que figuravam três dos quatro humoristas que ajudam a dar cor a este habitualmente cinzento país, e no qual eram glosados alguns dos factos que acabavam de suceder, não faltando inclusivamente uma mensagem subliminar, sob a forma de agradecimento: “Obrigado Fernando Santos, serás sempre bem vindo a esta casa (desde que o faças na condição de: adepto, engenheiro, tratador da relva, sócio, empresário de jogadores . . . )”.
A festa que se lhe seguiu, apercebo-me agora, só pode mesmo ser explicada a quem marcou presença, portanto, se não foram, lamento mas não vos posso ajudar a ultrapassar esse sentimento de culpa com que provavelmente se estão a debater. Fiquem-se pela minha garantia, sob palavra de honra, que nunca hei-de esquecer a noite de 20 de Maio de 2007.
* Depois de ter sido apelidado de Estrunfe Pessimista, na sequência de uma troca de argumentos com um conterrâneo benfiquista, este foi o exercício de que precisava para o desmentir. Até porque, uma coisa vos garanto, se há coisa que não sou… é azul.