Enquanto não tivermos a honra de ter a presença da Leonor nesta Tertúlia, temos de nos contentar com a reprodução da sua prosa no jornal “A Bola”.
Esta última crónica da Leonor Pinhão é uma resposta a um moço de fretes e recados que, num assomo de clarividência e capacidade de se auto caracterizar, decidiu assinar os fretes que faz ao dono com o sugestivo pseudónimo de ‘Pato’.
Deixo-vos a reprodução da resposta da Leonor Pinhão ao referido labrego.
Pelos meus dez anos, estando a lanchar com a minha avó e uma tia na varanda do snack-bar da Praia Grande, sobranceira à piscina de água salgada, veio o empregado de bandeja, e com maus modos, dispor sobre a mesa o serviço de chá, as torradas aparadas e o mais que fora encomendado, com a graciosidade de quem atira tijolos ao chão.
A louça ao bater no tampo metálico da mesa fez um barulho grosseiro e a força dos múltiplos impactos salpicou de chá a família. Como se não bastasse, meia torrada saltou do prato e ficou de esguelha, em posição inconveniente.
Cumprido o serviço, o homem da bandeja foi-se embora, muito direito, levando consigo a notinha providenciada pela minha avó que ainda lhe disse: «Pode ficar com o troco.»
– Que sujeito mais boçal… – comentou a minha tia.
– Coitado… – respondeu a minha avó.
– E ainda lhe deu gorjeta quando o que lhe devia ter dado era uma descompostura! — insistiu a minha tia, abespinhada com o comportamento do criado.
Ao que a minha avó, justificando-se, respondeu:
– Era só o que faltava! Não passo cartão a labregos.
– Há excepções — contrapôs a minha tia.
– Não há, não.
Eu vi e ouvi tudo, sem perceber, é certo, o alcance filosófico do diálogo que, mesmo assim, muito me impressionou pela novidade das expressões cujo sentido desconhecia. À noite, perguntei ao meu pai o que era um «labrego» e o que significava «não passar cartão a labregos».
Com as suas explicações, fiquei esclarecida. Mais do que esclarecida, convencida. Foi este o momento da minha infância em que o futuro me entrou pela porta.
Por vezes, no entanto, permito-me duvidar. Do ponto de vista dos labregos, o não lhes passar cartão, não poderá ser entendido como o usufruto de um poder intimidatório, exercido impunemente sobre pessoas de bem, na certeza fácil de que não terão resposta?
Não deveria a minha avó ter posto no lugar aquele criado com a bandeja, protagonista de um serviço lamentável, em vez de se dar ares de abstracção e limitar-se a ignorá-lo em nome de princípios romanescos tão deslocados da vida real?
Eu compreendo-a. Passar cartão a um labrego é reconhecer-lhe a existência. O erro é julgarmos que isso de algum modo os afecta. Porque, na verdade, um labrego não tem vergonha nenhuma.
Não se pode viver com medo de ouvir o nosso nome pronunciado em público por estranhos. Ou viver temendo que o nosso nome venha a ser pronunciado em público por estranhos. Interiorizado esse pudor de classe, mais não faremos do que ceder objectivamente à intimidação que o marcar da distância nos obriga.
António Tavares Teles é o autor de uma rubrica no jornal O Jogo, denominada O Pato. Depois de ter ameaçado com um «prepare-se» um jornalista íntegro e, por isso mesmo, mais do que preparado, veio no último sábado, afirmar que possui «cópia, é claro» da factura n.º 2.1.54219 da Agência Abreu, passada a 18 de Março de 1988, ao SL Benfica, referente a «oito viagens ao Luxemburgo e Bruxelas» de oito jornalistas, no valor nominal de 87.300 escudos.Espectacular, pá!
A mesma factura já fora agitada aos quatro ventos quando a SIC, há mais de dez anos, revelou o episódio das viagens de árbitros para destinos exóticos a custas de um clube de futebol, tendo motivado um comunicado esclarecedor do Sindicato dos Jornalistas que, pelos vistos, desta vez anda a dormir. A mesma factura voltou a ser agitada pelo presidente do FC Porto, no mês passado, quando depois de três acusações por parte do Ministério Público sentiu vontade de pronunciar o meu nome, embora eu não seja do Ministério Público.
Bem pode, António Tavares Teles, também ele, emoldurar a factura e bem podemos nós, os oito jornalistas, regozijarmo-nos pelo facto de os melhores «serviços de informação do país» não terem nas nossas «fichas» nada, rigorosamente nada, que nos possam comprometer, envergonhar ou provar como criadagem ao serviço de quem quer que seja.
Em Outubro de 2003, no decorrer de um Boavista-FC Porto, Deco perdeu a cabeça e atirou com uma bota ao árbitro Paulo Paraty. Foi expulso e castigado com 3 jogos de suspensão. As pressões exercidas para aligeirar a punição do jogador constam de uma certidão do Ministério Público, no âmbito do processo Apito Dourado. As escutas referentes a este episódio foram publicadas no Correio da Manhã, a 16 de Abril. E, em resumo, é disto que se trata:
O presidente do FC Porto e o presidente da Liga de Clubes conversam ao telefone sobre a melhor maneira de despenalizar Deco. Valentim Loureiro diz a Pinto da Costa: «Mas, ó Jorge, você veja aí com os seus serviços como as coisas poderiam conduzir-se para minorar os efeitos.» E «Jorge» responde-lhe que os seus «serviços» já estão «a estudar» o assunto. Eis o estudo: o presidente dos árbitros garante ao presidente do FC Porto que o árbitro Paulo Paraty «não vai utilizar a palavra agressão» no relatório do jogo e o presidente do FC Porto convence Deco a não comentar a notícia que vai sair no dia seguinte no Pato dando conta de que o jogador se recusa a jogar pela Selecção Nacional no Europeu. Assim:
– Amanhã vai sair aquela coisa no Pato.
– Hum – responde Deco.
– É uma coisa do género «pode estourar uma bomba… ofendido com o que foi dito e o castigo»…
– Hum — volta a responder Deco.
– … e tal… pode estourar uma bomba que é possível que Deco, desgostoso com a perseguição que lhe está a ser feita, se calhar vai pedir dispensa de jogar na Selecção, ou coisa assim, estás a perceber?
– Hum, hum — é a resposta de Deco (e só por estes quatro «hums» merece uma salva de palmas).
– Que é como forma de pressão para…
– Hum, hum – mais dois «hums» de Deco, provando como é esperto dentro e fora das quatro linhas.
– Portanto, se amanhã alguém te telefonar a perguntar se isso é verdade tu dizes: «Sobre isso não falo nem uma palavra»…
A transcrição das escutas reporta-se, depois, ao dia seguinte. O presidente do FC Porto ouve Antero Henriques deleitar-se com a notícia do Pato, que já grasnara de véspera:
– Esta do Pato, do Deco, vou-lhe dizer uma coisa, pá, eu sabia que o presidente era um génio, mas esta, f…-se!
– Como é que vem? – pergunta o presidente.
– Um espectáculo, pá.
– Como é que está?
– Acho que é uma chantagem fantástica! – acha Antero Henriques.
Eu acho que é mais «um espectáculo, pá» do que «uma chantagem fantástica». E de genial, «hum», só o descaramento.
Outro «espectáculo, pá» é a notinha que o mesmo Tavares Teles escreveu no último domingo, no Diário de Notícias sobre o livro de Carolina Salgado. Passo a transcrever: «Mãozinha de quem? De Leonor Pinhão, como insinua Fernanda Freitas? Quem sabe? Autora moral já se sabia que de algum modo Leonor Pinhão era. Mas material também? Vamos ver o julgamento.»
Vamos lá, então, ao julgamento:
Ao longo de cinquenta anos a minha vida no crime resume-se a uma multa por excesso de velocidade.
Nunca fui autora moral, nem material, nem cúmplice, nem pau-mandado de «chantagens fantásticas».
Tenho, do meu lado, «moral» e «material» que o provam com ampla e eficaz suficiência.
E espero que a minha avó me desculpe ter aberto esta excepção."
(Leonor Pinhão em 'A Bola')